No território Guyraitapu Pygua, a Aldeia Araponga, a produção de cestaria guarani convive com outros fazeres artesanais, como as miçangas, os arcos e flechas e os paus de chuva. Realizadas em menor quantidade, as cestas ficam a cargo da Xerajy e mais velha da aldeia, Dona Marciana Benites, a Para Mirim, criadora de peças ricas em variedades e detalhes. Sua habilidade impressiona pela rapidez, assertividade e variações. A produção inclui leques, chocalhos e outras peças específicas que só podem ser encontradas na aldeia Araponga.
Nascida no Uruguai, Dona Marciana conta que produz há mais de 60 anos. Aprendeu ainda criança, quando tinha cerca de dez anos, apenas observando uma tia. Sempre se interessou pelos modos de fazer e as diversas possibilidades de criar com a taquara, espécie nativa que se assemelha ao bambu. De tanto observar, foi entendendo como iniciar, desenvolver e finalizar as tramas. Absorveu e adaptou algumas técnicas e inventou outras tantas. De modo esporádico, utiliza outros materiais, como pedaços de madeira imbaúba, sementes nativas, cipó imbira, entre outros.
Assim, Dona Marciana cria uma variedade grande de objetos: leques, chocalhos, tiaras, cestarias. Muitos formatos são fruto de sua inventividade. Outros dizem respeito ao repertório de criação dos Guarani Mbyá, como as tradicionais ajaká. Produzidas a partir de princípios míticos, essas peças de cestaria guardam alimentos no Nhemongarai, cerimônia que acontece em todo o território guarani. Neste rito é feito o batismo, ocasião em que as crianças recebem seu nome guarani. Na celebração também acontece a consagração do milho e de outros alimentos e sementes.
Com exceção das ajaká, muitos dos objetos foram incorporados no trabalho de maneira experimental. Isso foi possibilitado pela observação de objetos dos juruá (pessoas que não são Guarani) e do acolhimento de sugestões para criação. Por outro lado, o fazer tradicional mantém sua presença e singulariza alguns tipos de peças específicos, que não são comercializáveis.
A preservação da cultura, que não pode ser pensada de forma dissociada da natureza, é parte fundamental das premissas do trabalho com o artesanato. E também diz respeito às demais vivências do cotidiano da aldeia. A conexão com o sagrado é uma essência que permeia todos os afazeres de uma pessoa guarani. Seu Agostinho Silva (de nome indígena Karai Tatendy Okã, cacique do grupo, ou seja, Xeramoi) e sua esposa Dona Marciana contam que Nhanderu – principal divindade do cosmos Guarani – mantém o povo conectado com a natureza / cultura, enviando orientações de tudo que fazem. Nhanderu é o deus que guia e permite (ou não) que as coisas sejam feitas, sejam elas quais forem.
A criação de Dona Marciana vai além das questões relacionadas à subsistência, pois seu aprendizado e sua prática partiram primeiramente do desejo de fazer. Desse modo, a produção que ela realiza configura uma trama complexa, que entrelaça sentimentos da criadora a aspectos da organização do mundo Guarani.
As tramas formam grafismos inspirados em figuras míticas e que se diferenciam de acordo com a destinação dos cestos. Aqueles inseridos em ritos sagrados possuem motivos relacionados ao que se agradece a Nhanderu, principal divindade Guarani. Nas ocasiões rituais, as ajaka utilizadas possuem tons naturais e servem para receber os alimentos que fazem parte das cerimônias.
Segundo os conhecimentos de Dona Marciana e Seu Agostinho, a colheita de matéria-prima deve ser feita entre os últimos dias de lua minguante até a lua nova. Nino Benites Veraxunu, um dos filhos de Marciana e Agostinho, costuma passar horas na mata para coletar os materiais. Ele só colhe o que será usado.
As espécies citadas nas entrevistas foram a taquara, o imbé e a imbira. São plantas nativas da Mata Atlântica, de ciclo perene. Eventualmente são utilizados pedaços de imbaúba e sementes, para criação de peças específicas.
As seguintes fases de produção são comuns para a maioria dos processos:
*Para mais informações sobre os materiais, incluindo variações de suas denominações e utilizações, consultar a listagem disponibilizada em REFERÊNCIAS.
Neste território, é mais comum a cestaria ter as cores naturais dos materiais utilizados. De taquara e taquaruçu, as tramas são feitas com fitas bem finas que vão sendo lascadas após o processo de secagem.
Os tons são de palha ou amarelados, acinzentados, por vezes levemente cintilantes, cores típicas de tramas de bambu. Já a casca do imbé traz tons brilhantes e escuros de marrom e preto, sendo utilizada em detalhes de finalização ou em algum paraí – palavra usada para designar os grafismos que algumas peças contém. Tais grafismos podem representar o mar, os rios, ventos, cobras, teiús (lagartos), cachoeiras e outros elementos, que estão ligados ao que Dona Marciana sente na hora de iniciar as tramas.
Algumas peças são feitas de tramas tingidas com anilina. A criadora delas conta que antes os juruá compravam mais os cestos coloridos. Agora, contudo, têm demonstrado preferência pelas tonalidades naturais, como aquelas presentes nas peças que ela fabrica para uso entre os Guaranis da aldeia.
Os grafismos formados pelas tramas são chamados de paraí. São inspirados conforme o motivo do feitio, como os ajaká feitos para cerimônias específicas. Os motivos em questão dizem respeito ao universo Guarani e, desse modo, participam da transmissão de histórias e mensagens da natureza; compostas por cachoeiras, ventos, mar, animais – como cobras, lagartos, jabuti – e há também os que falam sobre trilhas ou caminhos.
As memórias e demais informações sobre a produção de cestaria em Araponga foram produzidas, entre julho e agosto de 2022, em colaboração com:
Seu Agustinho Silva, Karai Tatendy Okã, cacique da aldeia Araponga, Xeramoi;
Dona Marciana Benites, Para Mirim, Xerajy e mais velha da aldeia;
Nino Benites Veraxunu;
Também houve consulta a material bibliográfico que está listado na aba Referências.
Nino – (24) 998 351 578